domingo, dezembro 03, 2006

Registros Folclóricos

OS REGISTROS MUSICAIS DA MISSÃO DE PESQUISAS FOLCLÓRICAS
Marcos Branda Lacerda
A partir do início do século XX, o estudo de músicas étnicas e populares foi gradualmente institucionalizando-se em centros europeus. Criou-se um ramo da ciência que, sob a designação de musicologia comparada, tinha por base a investigação de elementos da música inerente à vida em sociedades diversas. Pelas mãos de etnógrafos, novos repertórios afluíam a arquivos sonoros recém-fundados. Até então, a pesquisa dessa música ocorria de forma espontânea no domínio cultural próprio de observadores independentes: uma atitude que remonta à fundação do romantismo, por força do interesse de poetas e homens de letras principalmente da Alemanha, no final do século XVIII. A preocupação naquele momento era sobretudo o texto poético; a música seria objeto de estudos particulares somente décadas mais tarde, com as primeiras publicações de melodias populares.
Dentre as tantas atividades de Mário de Andrade está a do musicólogo de matizes diversificados avesso ao sectarismo. Ele se mantinha obsessivamente a par de pesquisas e aproximações da cultura popular, no Brasil e na Europa. Se igualássemos criação musical e criação literária, poderíamos alinhar seu perfil profissional ao de um Béla Bartók, que a partir do início do século XX percorre sistematicamente vastas regiões do Leste Europeu em busca de definir a imagem sonora particular da tradição próxima à qual ele próprio se criara. Ambos souberam associar à visão modernista as experiências realizadas com profundidade no domínio popular. É bom lembrar que a visitação a gêneros populares ocorria no início do século XX por razões de um anseio abstrato de identidade, mas era motivada também pela busca de uma combinação de originalidade técnica e poder comunicativo. Mário certamente não desconhecia o fato de que a idéia nacional auxiliara na reestruturação do pensamento artístico: novos materiais e objetividade de expressão ofereciam-se como uma possibilidade de cura da generalizada intoxicação romântica.
No entanto, a aproximação da cultura popular por parte de intelectuais impunha não apenas vontade, mas também mente socialmente aberta, disciplina e metodologia específica. No que tange ao trabalho de campo – uma ferramenta imprescindível de pesquisa –, Mário veio a comparar sua atuação, indiretamente, àquela de um turista aprendiz. Entretanto, como elaborador de conceitos e influenciador direto de uma geração de artistas e intelectuais, seu trabalho foi intenso e produtivo, e ainda hoje revela aspectos inéditos de consistência conceitual. Ao lado de suas inúmeras publicações sobre assuntos musicais, destaca-se a cuidadosa arquitetura desse inusitado projeto que foi a Missão de Pesquisas Folclóricas, uma expedição de 1938 pelo Norte e Nordeste do Brasil, que visava a recolher a música tradicional dessas regiões. O próprio Mário viabilizou o patrocínio da expedição como primeiro diretor do Departamento de Cultura de São Paulo (1934–1937), hoje Secretaria Municipal de Cultura. A presente produção é um recorte expressivo – acreditamos – do extenso material recolhido pelos pesquisadores da Missão. É claro que tais registros permitem, hoje, muitas leituras e maneiras diversas de escuta e apreciação. Apesar disso, no momento em que se completa o primeiro grande esforço de sua divulgação na forma sonora1, achamos importante oferecer um pequeno esboço de sua história e de suas implicações culturais, enfocando com brevidade alguns aspectos de sua organização, realizada pelo Autor e por Rosa Zamith2 a partir do Acervo Histórico do Centro Cultural São Paulo. Flavia Toni nos dá a seguir detalhes da elaboração e realização do empreendimento e Jorge Coli aborda o pano de fundo de sua concepção no contexto das inquietações de Mário de Andrade e seu tempo.

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