domingo, dezembro 03, 2006

Dados Folclóricos 2

Os Cocos são livres de uma narrativa definida e possuem um valor inestimável de apreciação da diversidade musical e da capacidade de expressão de fatos e sentimentos sobre a vida social. Eles se fragmentam em diversas formas de construção melódica submetidas a padrões poéticos específicos (embolada, martelo, galope etc.). Aqui também sugerimos ao ouvinte mais atento uma audição repartida por diversos grupos, para equilibrar as variadas formas musicais implicadas nessa manifestação. Parece-nos mesmo que aspectos da construção desse repertório, ao lado de elementos rítmicos que cada vez mais se aproximam do samba de roda, se constituem no recurso mais imediato de permeabilidade entre múltiplas manifestações mostradas na coleção.
Outros gêneros dramáticos presentes são as Congadas, os Reisados e as Marujadas (Barca, Nau Catarineta etc.), em que são mantidas com maior estabilidade as representações de origem. É notável a permeabilidade das formas musicais entre todos esses gêneros. A articulação consistente do repertório da Barca de João Pessoa (CD5: faixas 24 , 25 , 26 , 27 , 28 , 29 e 30 ) expressa claramente as razões de sua presença no repertório de artistas contemporâneos. O alinhamento de tais manifestações (e de outras) dentro de uma mesma produção poderá esclarecer algumas dúvidas suscitadas pelas definições de estudiosos, que são baseadas quase sempre em casos particulares.
Um outro recorte expressivo da Missão são os repertórios derivados da presença africana no Brasil (Xangô, Tambor de Mina, Tambor de Crioula, Babaçuê e Pajelança). Nesse caso, a coleção parece apontar para um processo de aculturação concluído. O Babaçuê e o Tambor de Mina de Belém do Pará e de São Luís dão mostra da incidência de padrões musicais africanos, mas sempre combinados às mudanças em marcha em solo brasileiro. Buscou-se contemplar na escolha dos repertórios desses grupos as referências a origens (sobretudo aos Voduns) diversas das que são comuns no Xangô de Recife e no Candomblé da Bahia.
Finalmente, cabe mencionar o repertório dedicado à Cantoria. Apesar dos expressivos fonogramas esparsos pela coleção, é necessário referir mestres extremamente peculiares. Trata-se dos violeiros de Pombal e Cajazeiras, na Paraíba (respectivamente CD3: faixas 1 , 2 , 3 , 4 , 5 , 6 , 7 e faixas 36–40). Poderíamos basear produções independentes em seus repertórios, dotados de grande poder comunicativo e valor pedagógico. É possível inclusive que nesses casos a Missão tenha recolhido exemplos de padrões poéticos que não pertencem mais ao uso comum. Mais uma vez procurou-se fazer uma amostragem completa das diversas formas poético-musicais a partir da combinação de todos os repertórios do gênero.
Nota final
De maneira ora esparsa, ora concentrada, várias tendências da sensibilidade musical de grande parte do país revelam-se a nossos ouvidos nesta valiosa seqüência de fonogramas. Tais tendências remetem a substratos que vão desde os hábitos musicais eruditos da igreja (alguns Cantos de pedinte, por exemplo), derivações estilísticas indígenas (Praiás) ou africanas e afro-brasileiras (Tambor de Mina e Tambor de Crioula, por exemplo), até a tradição de origem mais diretamente portuguesa (a Barca de João Pessoa). No entanto, fica também a impressão de uma homogeneidade latente já na época em que ocorreu a Missão, através da massiva participação e recorrência de um conjunto relativamente compacto de elementos musicais e seu poder de penetração e migração entre as mais variadas situações sociais que se deixam acompanhar pela música tradicional popular.
Certamente, não poderia ser nossa pretensão aqui aventar as incontáveis perspectivas de escuta e reflexão a que pode nos levar este acervo, mesmo na forma desta antologia. Isso é tarefa para músicos e toda uma comunidade de estudiosos que começa a formar-se pelo país. O acervo já colaborou na elaboração de alguns trabalhos tópicos sobre a cultura brasileira e deve agora ser objeto de consultas mais intensificadas. Novos pesquisadores saberão recorrer aos repertórios na forma completa e associá-los às muitas outras fontes de apreciação. O atraso na divulgação deste repertório poderá ter, afinal, boas conseqüências. Foram esboçados aqui apenas alguns pontos que nortearam o processo de seleção, que, em última análise, se baseou em atividade prática e perceptiva.
Como mencionado acima, os organizadores só podem desejar que estas horas de música estimulem a discussão proposta por este imenso projeto, conduzido até seu final por pesquisadores que, a despeito das particularidades de cada uma das manifestações, estavam em busca de algo que as mantivesse unidas.
1. Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga cederam cópia dos fonogramas da Missão de Pesquisas Folclóricas à Biblioteca do Congresso no início dos anos 40. Um CD de pouca circulação foi publicado a partir daquele material na série The Library of Congress – Endangered Music Project, The Discoteca Collection, RCD 10403.2. A Rosa Zamith o agradecimento especial pela forma cuidadosa, generosa e inspirada com que conduziu sua participação na escolha do repertório e também pelas sugestões feitas a respeito deste trabalho. 3. O Catálogo Histórico-Fonográfico da Discoteca Oneyda Alvarenga, cuja elaboração esteve a cargo de Álvaro Luiz Ribeiro da Silva Carlini e Egle Afonso Leite, foi publicado pelo Centro Cultural São Paulo em 1993. Dele foram extraídas as informações referentes aos títulos dos fonogramas. Em alguns casos foram consultadas as anotações de Oneyda Alvarenga, bem como as cadernetas de campo, produzidas pelos pesquisadores na ocasião dos registros. A consulta foi realizada pela equipe do Acervo Histórico – CCSP, composta pelos pesquisadores Vera Cardim Cerqueira (responsável), Carlos Sampietri e Carlos Gimenes. As faixas de 4 a 7 do CD 2 foram nomeadas, no entanto, para esta produção. 4. A realização da antologia tornou-se possível graças a um projeto de digitalização e restauração do acervo, viabilizado entre 2002 e 2003 e patrocinado por VITAE. Elaboração e supervisão do projeto ficaram a cargo respectivamente de Fávia Toni e Marcos Branda Lacerda, com a colaboração de Evaldo Piccino e José Eduardo Azevedo. Os trabalhos técnicos foram efetuados por Carlos Akamine e equipe da Companhia de Áudio, São Paulo. O repertório aqui apresentado foi submetido ainda a um discreto tratamento de áudio por Pedro Paulo Köhler e Big John, sob a supervisão de Fernando Iazzetta. A masterização foi realizada por Jade Pereira, da empresa Classic Master. Todos são aqui lembrados pela afeição e sensibilidade que demonstraram ao tratar este repertório. 5. Trata-se das seguintes faixas: CD1, f.33; CD2, f.12; CD3, f.32 e CD4, f.19.

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