domingo, dezembro 03, 2006

Dados Folclóricos

Alguns dados
O catálogo histórico-fonográfico da Discoteca Oneyda Alvarenga – Centro Cultural São Paulo3 assinala a existência em seu acervo de exatos 1299 fonogramas originais em acetato referentes à música popular tradicional. Eles provêm de origens distintas: gravações realizadas no Estado de São Paulo no início de 1937 e no final de 1938 (Itaquaquecetuba, Capital, Carapicuíba e Atibaia), e gravações da Missão propriamente dita, realizadas entre fevereiro e junho de 1938 em quatro Estados do Norte e Nordeste. Do total, que abrange cerca de 33 horas de gravação, mais de 90% cabem às manifestações pertencentes à Missão. Excetuando-se as gravações realizadas fora da capital de São Paulo, o material apresenta-se em bom estado de conservação4. Assim, os organizadores desta antologia puderam acrescentar aos registros da Missão exemplos de uma manifestação ocorrida em São Paulo antes que ela fosse iniciada. Trata-se da Congada e danças diversas, apresentadas por um grupo da cidade de Lambari (MG), a convite do Departamento de Cultura. Esses registros (CD6: faixas 32 , 33 , 34 , 35 , 36 and 37 ) são bastante consistentes na representação do repertório e expõem como nenhum outro a dramaticidade implícita na realização das Congadas mediante a longa recitação teatral.
Esta antologia consiste portanto em 6 CDs com o total de cerca de 7 horas de duração e 279 faixas correspondentes a 293 fonogramas originais. Apenas algumas faixas dedicadas a Aboios reúnem um conjunto de registros realizados sucessivamente5. Os pesquisadores da Missão visitaram mais de 70 grupos musicais ou artistas independentes. O material aqui presente oferece um rico panorama dos gêneros praticados naquelas regiões do país. Na forma como se encontra no acervo paulista, ele talvez se configure bem além das fronteiras brasileiras como uma das mais abrangentes pesquisas de campo realizadas de uma só vez até aquela data.
A seleção de repertório
Tornar público este material implica a necessidade, em um primeiro momento, de reduzi-lo a uma antologia. Face à dimensão e diversidade do acervo, assim como à complexidade do processo de seleção, os organizadores só podem desejar que esta compilação esteja à altura dos esforços empreendidos pelos membros da Missão, que seja adequadamente representativa e que corresponda a uma eventual ordem de importância conferida pelos próprios grupos às partes de seu repertório. Para tanto, um cuidado essencial foi tomado logo de início: em razão de sua natureza histórica, mas também da consistência estilística, do engajamento dos participantes e da expressividade em geral, estão aqui representados os mais de 70 grupos, em sua totalidade, sem importar se uma determinada manifestação tenha produzido um único fonograma ou dezenas deles.
Isso já impõe alguns atributos à produção: não se constituiu em critério absoluto a preferência pelos fonogramas que melhor resultaram do processo de restauração, tampouco foram sumariamente eliminados os grupos que apresentam uma qualidade vocal ou instrumental comparativamente “menos consistente” do que a de grupos similares. Dessa forma, não se surpreenda o ouvinte com eventuais oscilações de qualidade...
É sabido que alguns gêneros dão maior ênfase à repetição do que outros. Em alguns desses casos, decidimos por cortes no interior dos fonogramas, desde que a estrutura musical não ficasse excessivamente prejudicada. Por exemplo, os quatorze originais de Xangô do Recife possuem em média 7 minutos de duração. Caso fosse mantida a forma original nos três fonogramas escolhidos, ou teríamos de optar pela supressão de grupos inteiros, ou teríamos perdido a oportunidade de observar dentro dessa manifestação o contraste, por exemplo, da execução musical na situação regular de culto e na situação em que ocorre o transe religioso, que os pesquisadores tiveram a felicidade de presenciar (CD1: faixas 16 , 17 e 18 ).
Apesar dos cortes em fonogramas extensos, algumas faixas mantêm a longa duração original. Esse é o caso da Chamada do Aricury (CD1: faixa 19 ), um canto indígena dos Pancararu que sintetiza várias tendências sociais: a repetição quase hipnótica de um fragmento melódico que nos traz à memória os modos da cantoria é interrompida no final pela participação gestual do coro masculino e as pontuações dos instrumentos de sopro. Na faixa seguinte, esta sim ligeiramente reduzida, nota-se então o mesmo grupo com um canto católico em contexto musical de etnografia muito particular.
Na parte dos Aboios, algum tempo pôde ser ganho eliminando-se tentativas nem sempre satisfatórias dos executantes, repetições mais curtas, tempo excessivo entre as melodias e as peculiares formas de “emissão vocal.” Da mesma maneira, do solitário intérprete do repertório da Pajelança em Belém do Pará (CD6: faixas 26 , 27 , 28 , 29 e 30 ) omitimos as repetições melódicas para dar lugar no mesmo CD à Congada de Lambari.
Por outro lado, grupos com um repertório quantitativamente menor puderam ser mantidos em sua integralidade (ou quase). A razão disso foi a preocupação de não deixar a produção mais fragmentada do que já se impunha naturalmente, além do fato de esses grupos apresentarem-se na maioria das vezes de forma tão consistente quanto variada. Esse é o caso da Roda infantil (CD2: faixas 22 , 23 , 24 , 25 e 26 ), mas sobretudo dos repertórios com participação instrumental heterogênea, organizados na forma de uma seqüência de ritmos bem definidos (Modinha, Samba, Valsa, Baião, Cateretê etc.). Exemplos disso são os Cabocolinhos, o Cabaçal, bem como vários grupos esparsos da coleção.
O ouvinte perceberá a maior incidência das manifestações de Bumba-meu-boi e dos Cocos, fato que corresponde naturalmente aos resultados da expedição. No entanto, é no interior desses grupos que se manifesta a menor representatividade da seleção. De maneira geral, os grupos de repertório extenso revelam uma variedade calculada, isto é, quase sempre se nota em seus repertórios algum elemento musical predominante, válido para grande parte dos fonogramas: são em geral formas fixas de acompanhamento instrumental. Por outro lado, alguns dos grupos são nitidamente permeáveis a influências temporais ou externas que se manifestam de forma relativamente discreta: uma espécie de intrusão estilística ou retenção de traços possivelmente em extinção (modalismo, por exemplo). O Bumba-meu-boi é um campo especialmente fértil para isso. Diante desse fato, mantiveram-se os fonogramas excepcionais e reduziu-se quantitativamente a participação dos ritmos que do ponto de vista musical mais caracterizam a manifestação. Talvez aí tenha ocorrido certa subjetividade de escolha. Para dar um exemplo: o Boi-bumbá de Belém do Pará possui originalmente nada menos do que 132 fonogramas, reduzidos aqui a 19 faixas (CD6: faixas 2 , 3 , 4 , 5 , 6 , 7 , 8 , 9 , 10 a 21). Nele descobrimos contrafações do samba carioca (“Pelo telefone”, de Donga, é uma delas) que, somadas a outras características do grupo, apontam para o “cosmopolitismo” daquela cidade. Fatos como esse, por mais circunscritos que sejam, não poderiam deixar de estar representados. A contrapartida da proliferação de estilos em um mesmo repertório é a diluição do desenvolvimento dramático da manifestação, ou mesmo da narrativa textual homogênea e progressiva. A cada novo grupo de Bumba-meu-boi buscou-se, por isso, salientar uma parte específica da cerimônia. Estamos certos de que a audição “cruzada” desses grupos poderá compor uma idéia bastante precisa de seus elementos dramáticos e narrativos.

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